COMA


Estou na coma. Internando em zona.

Me dão lixo pra que eu coma, recuso mas vem pela sonda.
Oh, doutor, por favor, não desligue os aparelhos eu ainda respiro, pelo amor!
Meu coração ainda está batendo, o cérebro pouco, mas o que está mais valendo?

Não é emoção do que razão? Mexo também a mão, ela ainda funciona pra obra.
Então, padrinho patrão não me deixe em vão me empregue agora.
Estou meio tonto posso cair, posso andar, mas não posso sair dessa UTI.

Fios invisíveis me mantêm preso aqui!
Paralisado internamente. Sofrendo sorridente. Lutando cordialmente. O ambivalente.
Herdeiro de um passado que não passa. Uma mudança que não muda.

Uma anistia que não anistiou. Deturpou a nossa etnia. A presente distopia.
Separados concomitantemente juntos.

Olho pras paredes do conjunto e vejo a cegueira branca e vultos
Cada um em seu leito. Quem ta fazendo isso com a gente? Já não enxergamos direito.
Esse lugar parece uma colônia, mas não estou de férias, estou a trabalho
Não sou escravo, sou assalariado. Tudo está mudado.
Houve consideráveis alternâncias na terminologia quilombo virou periferia
O capitão do mato não vem a cavalo vem de blazer, é rato.

A Casa Grande e Senzala se dividiu entre Alfaville e a favela
Uns atrás das grades outros atrás das celas
A estupidez ibérica causos grandes seqüelas
Anulou nosso idioma local nos fez acreditar que dá pra vencer só pelo cultural
Com o samba, o carnaval, o tambor, o berimbau, a capoeira.
E eles estão lá controlando o petróleo assim como fizeram e fazem com a madeira
As drogas são aplicadas no meu corpo de diversas maneiras.
Estou na coma. Internando em zona.

Me dão lixo pra que eu coma, recuso mas vem pela sonda
No rádio a Bossa Nova me acalma com ela não preciso de esforço
pra ascensão o tempo passa a vida passa como um conversa na praça
Bim, bim, bom conforta meu coração. Sou narrado por um narrador distante na canção
Quer conhecer de perto a Gente Humilde? Melhor não.

Só de escutar tu tens vontade de chorar, mas quem ta aqui dentro tem vontade de estourar, se revoltar, mas uma força silenciosa nos faz brecar
A esquina é linda, tem doçura pra a classe A, B e C
Pra aqui viver só se for D e E.
A narrativa das ruínas é sussurrada com delicadeza
Mas a realidade é um horror uma tristeza.

Trocam de freqüência colocam no jogo. Futebol, cerveja, churrasco no sol.
Muda a estação e o que vem é mais injeção que altera meu raciocínio me deixando na alienação.
O hip-hop me dá choques na intenção de me tirar desse coma
As chances são poucas o tempo vai se esgotar
E o resultado, meus filhos é que irão contar.

Emerson Alcalde


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